sexta-feira, 1 de janeiro de 2010

A omnisacaria

“Não quero frango, nem franganote, muito menos galinha velha, quero o seu melhor galo, ouviu!”
O caricato deste recente episódio ilustra que o rei da capoeira para as nossas bandas ainda vai cantando bem alto continuando a ser a principal moeda de troca na paga de favores.
Não pretendo fazer o aproveitamento mediático da atitude torpe deste funcionário, muito menos aceito que me acusem de verbomania e de generalizador das situações. No entanto, se reflectirmos sobre o sucedido, constatamos tratar-se, evidentemente, de uma manifestação de mau profissionalismo e não de qualquer “galomania”. Raros são aqueles que, na Nossa pacata Terra, desconhecem este e outros episódios.
É inadmissível que os nossos serviços públicos alberguem e sustentem, com gastos faraónicos, funcionários que, na sua prática diária, só não se atrevem a labutar para o bísaro, mas vão trabalhando para o sarrabulho, para as chouriças de sangue, para o chourição e para o presunto. Interessa-me aqui salientar como sendo, sem qualquer dúvida, acto corrupto e ignóbil que em nome do “arranjinho” se ganhe o cabrito ou se coma a chanfana. É abjecto que alguns vilões devorem o coelho que tanto suor custou à gente humilde desta Nossa Terra. É desprezível comer o pão divinal dos nossos lavradores. É infame beber, “à pala”, a boa pinga. Também é condenável “mamar” o peru. “Não o quero vivo. Não o sei degolar! Mate-mo, por favor…” E lá é adiado, às vezes, por umas horas a morte do bicho! Depois, regressa devidamente esventrado e limpo só lhe faltando o recheio. Que vassalagem e que mordomia!
Igual destino espera aos nossos galos e aos nossos polhastros. “Que boa cabidela! Que bom pica no chão!” Uma vez ou outra, os “sugadores de boca fina”, também sorvem inocentes cabritinhos!
Mas como a nossa bondosa e ingénua gente não os presenteia com o molho das couves, o feixe da erva e a saqueta do milho, alguns dos zelosos “chupistas”, por falta de logística, já chegaram a recorrer ao “hotel alheio”. Nisto não costuma haver segredo: “Que chatice, tenho a arca cheia! Por favor, tratas-me do galo! É só por uns dias...” Que bom negócio não seria ter criado, à semelhança dos hotéis para cães, hotéis para os galos! Não sei se a Nossa Terra precisa(va)?!
Muitos dos favores feitos podem ser medidos a “olhómetro”, basta observar o tamanho da saca. Quanto maior é a saca, maior foi, certamente, o jeito, a intrujice e, quiçá, a embustice. Que jeito fraudulento! Mas que saca! Mas que grande sacada! Uma epidemia! Não, é bem maior, grassa uma pandemia… Eureka: a “panfavoria” e a “omnisacaria”!
Como se aproxima o Natal prevejo ser inevitável o corridinho da saca, uma perfeita “multisacaria”. É a servidão e a gulodice da saca que reduzirá a uma bagatela o Pai-Natal!
Contam-me alguns mirones insuspeitos que, às vezes, as sacas e as sacadas são colocadas nas portas erradas. Nunca se chegou a pensar no cicerone do saco ou no posto informativo da saca. Não vá o diabo tecê-las! Qualquer dia, quem menos espera, poderá encontrar, à porta do seu doce lar, um cabritinho preso por uma guita, um bacorinho ou até um garrano seguro por uma robusta corda! Surpresa maior, talvez um asno! Camelo, afianço-vos, nunca!
Que atrevimento e que carão têm os “superfuncionários”, audazes em “multifavores” e nos “mini e hiperfavores”, também nos comportamentos (in)suspeitos e proveitosos que nunca comprometeram ninguém: nem a empregada de limpeza que também manda, nem o senhor doutor que manda pouco, nem o chefe que se já esqueceu que manda, e sabe-se lá mais quem!... Desrespeitam-se hierarquias porque há “rabos presos”! Nesta tipologia da função pública, todos costumam ser argutos e vão sabendo fazer as coisas. Nunca receiam uma “operação sacas limpas”! Não sei o que seria com tanta “sacalhada”!
Tudo decorre, na Nossa pacífica Terra, quase numa pueril fantasia. Que inocentes que nós somos! Neste idílico espaço, granjeiam-se instantes de felicidade e, à custa dos simples, vão crescendo as dispensas, as arcas-frigoríficas e saciam-se os estômagos famintos dos cravas.
A cunha, o favor e o galo bem juntinhos justificam a tendência de alguns para o percalço e para a tentação. É a “gula da saca” e a ignorância da ética e da deontologia que explicam a incontrolável vontade humana para errar - errare humanun est. Estes eleitos e vis corruptos enrolam os mais humildes e os mais pobres, vão, compulsivamente, cometendo pecadilhos e pecadões em proveito da glutonaria. Será a polifagia que os move?!
Esta é a (in)consciência de alguns dos verdadeiros caciques pendurados no “tachinho público”, velhinhos no ofício, à boa maneira do Estado-Novo, os especialistas compulsivos da intrujice e do favor em nome da meritocracia. Persistem em sobreviver estes abnegados e refinados glutões das sacas, ludibriantes do Nosso ingénuo e incauto Povo, principalmente o que desce dos nossos montes e não só.
Separemos as águas: os funcionários públicos da Nossa Terra são, na sua esmagadora maioria, óptimos. Os que baldrocam e usam argumentilhos para cumprirem com o seu dever são raríssimas excepções. Servir a população, sem esperar qualquer paga ou favor, não é uma ingente missão, como apregoarão alguns destes biltres, mas é um simples dever do funcionário.
Hoje, mais que nunca, espera-se de toda a nossa função pública a prontidão na resposta, satisfazendo-se de imediato todos os cidadãos. Sustentar-se com o fim do mês e não com “os trabalhinhos” em prol da saca deve fazer parte integrante da moral de qualquer funcionário. Os maus profissionais devem alterar os seus procedimentos, caso não o façam, deverão pedir a exoneração. Sócrates, o nosso Primeiro, dispensar-vos-á! Arguirei sempre os prevaricadores, os que ainda teimam nos métodos usuais e clássicos e nas habilidades. Que sagacidade julgam ter?!
Lutemos com perseverança contra a mundividência destes péssimos protótipos. Aniquilemos todos os “parasitas” nocivos para que seja extinguida a pouca conspurcação ainda existente no nosso funcionalismo público que, a persistir impunemente, nos envergonhará sempre. Não proponho nada de utópico, mas, simplesmente, um boicote activo aos ultrajantes, forçando-os a baixar de uma vez por todas a “crista” e a fasquia para que se limitem, unicamente, às normas da cortesia, ao muito obrigado.
Quando assim for, bem hajam, todos estaremos de parabéns!
Publicado no jornal o "Geresão" em 20 de Dezembro de 2006.

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