sábado, 15 de maio de 2010

Dr. Manuel Antunes: O Caso de Vilarinho da Furna

Manuel Antunes, sociólogo e presidente da AFURNA, Associação dos Antigos Habitantes de Vilarinho da Furna, foi o último a sair da povoação. «Aproveitei as férias do Natal e vim para aqui. A minha tia estava a viver na aldeia e passámos a passagem de ano de 70 para 71. Éramos os únicos que estávamos na aldeia. No dia seguinte pegámos na trouxa às costas, as últimas coisas que ela tinha, e viemos». Nesse ano, em 1971, a aldeia já fica submersa, apesar da barragem ter sido somente inaugurada a 21 de Maio de 1972. Acabou Vilarinho da Furna.
Transcrevo extracto da comunicação feita pelo Dr. Manuel Antunes no VI Congresso Português de Sociologia realizado em Maio de 2008. Desta sua intervenção, destaco a companhia construtora da barragem que foi o único inimigo que se lhe apresentou como invencível.

Remonta aos finais do século XIX a construção de barragens para a produção de energia eléctrica. Mas o pretenso desenvolvimento para as populações circundantes e/ou deslocalizadas em consequência da construção destes paredões de cimento, na maior parte das situações, não passou de uma ilusão. O “progresso” socioeconómico das povoações que sofreram o impacto da proximidade de uma grande barragem, comprova o mito. A maior parte das vezes, essa construção surge com um carácter inquestionável e incontornável, na medida em que o aproveitamento e armazenamento de água sempre esteve associado a políticas de desenvolvimento, que pouco se preocupavam com os problemas sociais e ambientais, a montante e a jusante das barragens. Em todo o Mundo, a construção de grandes barragens foi sendo feita num crescendo, como uma promessa associada à garantia da solução dos problemas hídricos e energéticos e da falta de progresso/desenvolvimento socioeconómico das regiões. Esse desiderato, deu origem a situações de mobilidade compulsiva de populações, que raramente foram consultadas sobre o real impacto, quer da sua localização, quer da sua dimensão. Em Portugal, de entre os múltiplos exemplos que se poderiam apontar, constituem casos paradigmáticos a barragem de Vilarinho da Furna, dos finais do Estado Novo, e a barragem de Alqueva, construída em plena democracia. Em Vilarinho da Furna, com a submersão da aldeia, a sua gente teve que se fixar em diferentes paragens, com a escassa indemnização que recebeu da então Companhia Portuguesa de Electricidade. Já com a construção da barragem de Alqueva, os habitantes da aldeia da Luz foram deslocalizados para uma nova aldeia construída de raiz, mas, volvidos estes anos, estão longe de vislumbrar a concretização das expectativas criadas em torno do "maior lago artificial da Europa".

2. O Caso de Vilarinho da Furna
Vilarinho da Furna era uma pequena aldeia da freguesia de S. João do Campo, situada no extremo nordeste do concelho de Terras de Bouro, distrito de Braga, na Peneda-Gerês. A sua origem perde-se na bruma dos tempos. Segundo uma tradição oral, transmitida de geração em geração, teria começado a sua existência por ocasião da abertura da célebre estrada da Jeira, um troço da VIA XVIII do Itinerário de Antonino, que de Braga se dirigia a Astorga, num percurso de 240 Kms, e, daqui, a Roma. Estaríamos, segundo a opinião mais provável, pelos anos 70 da nossa era. É possível que alguns dos traços da maneira de viver em Vilarinho se filiassem na cultura dos povos pastores e ganadeiros indo-europeus, provavelmente lá introduzidos por migrações pré-romanas e reforçados pelas invasões suevas. Mas, tudo o que hoje se pode dizer sobre as origens de Vilarinho da Furna, resume-se a um levantar de hipóteses, a um formular de perguntas que pairam no ar, em busca de uma solução que ainda não se divisa.
Todavia, um facto se apresenta incontestável: se não a sua origem romana, pelo menos a sua romanização. Aqui, como noutras partes do império, os romanos chegaram, ocuparam e deixaram rasto.
Já lá vão quase dois mil anos!... Passado obscuro, quase sem história, é o passado de Vilarinho da Furna. Não fosse a sua riqueza etnográfica e a construção da barragem que pôs termo à sua existência, e Vilarinho da Furna seria uma aldeia esquecida, anónima como o seu passado, qual pérola perdida na vastidão das serras do Minho. Mas tal não aconteceu, porque os olhos dos etnólogos descobriram em Vilarinho uma relíquia da velha organização comunitária, hoje agonizante, mas outrora muito difundida em toda a Europa. Mesmo sem ser um caso único, o comunitarismo de Vilarinho era, pelo menos, um caso invulgar.
Os traços fundamentais deste sistema comunitário situavam-se ao nível das condições económicas e da organização social.
As condições económicas desta zona têm a ver, essencialmente, com a distribuição/exploração da propriedade. Assim, no que respeita à posse da terra, nesta comunidade rural, deparamos com uma propriedade privada, diferentemente repartida por vários detentores. Mas este tipo de propriedade tinha o seu complemento numa outra propriedade colectiva, constituída pelos logradouros comuns, onde todos apascentavam o gado, roçavam os matos e cortavam lenhas, de acordo com normas previamente definidas e democraticamente aceites.
As actividades económicas de Vilarinho da Furna, desenvolveram-se num quadro típico de organização social, intimamente ligado às condições ambientais. Embora a natureza não exigisse uma única forma de adaptação, a escolhida foi, certamente, das mais adequadas. A base dessa organização assentava na assembleia dos representantes das várias famílias da povoação, que reunia geralmente às Quintas-Feiras, embora o pudesse fazer noutros dias, sobretudo de noite, se assim o exigissem as circunstâncias.
Essa assembleia, que em Vilarinho se chamava Junta, presidida por um Juiz, era herdeira do antigo conventus publicus vicinorum (assembleia pública dos vizinhos) do reino visigótico. Era ali que se analisavam os problemas que a todos diziam respeito e se decidia, por vontade expressa da maioria, quais as soluções a adoptar. A Junta era a perfeita expressão da democracia popular.
O Juiz ou Zelador, totalmente independente das autoridades administrativas oficiais, era obrigatoriamente escolhido por um período de seis meses, entre os homens casados da Junta, segundo a lista dos seus casamentos.
Eram muitos e variados os trabalhos que se apresentavam à Junta, periódicos uns, extraordinários outros. Assim, ela tinha que tomar medidas acerca da reparação e abertura de caminhos, organização da vida pastoril, distribuição das águas de rega, divisão dos matos a roçar, madeiras a cortar, montarias aos lobos, marcação das vindimas, etc., etc., e, nos últimos anos da vida de Vilarinho, estabelecer a melhor estratégia de luta contra a Companhia construtora da barragem, o único inimigo que se lhe apresentou como invencível.
Fonte: Dr. Manuel de Azevedo Antunes

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