quarta-feira, 14 de agosto de 2013

Memórias de Vilarinho das Furnas

Muitos dos eventuais leitores, principalmente aqueles que já ultrapassaram a barreira de meio século de vida, sabem que na freguesia de S. João do Campo, concelho de Terras de Bouro, existiu até ao ano de 1972 a aldeia de Vilarinho das Furnas. Submersa pelas águas da albufeira da barragem com o mesmo nome, nela viviam cerca de 250 pessoas com regras de convivência distintas. Da aldeia e do tipo de organização comunitária do povo residente existem referências históricas que remontam a 1623, sendo a mais importante delas a que atesta que chegou a ter um estatuto de freguesia autónoma no concelho de Terras de Bouro.
A viver de uma economia agro-pastoril, o regime socioeconómico da aldeia assentava no direito consuetudinário. Governada por um “conselho de anciãos” com plenos poderes para legislar e aplicar os seus “acórdãos” fundamentados nos “usos” e “costumes”, ao povo competia cumpri-los religiosamente. Vilarinho das Furnas vivia assim numa espécie de estado independente com governo e legislação próprios. Não existiam classes, o coletivo e a fraternidade primavam.
A aldeia localizava-se no vale profundo do rio Homem, nas fraldas da serra Amarela. Para sul estendia-se extensa veiga de terras férteis que todos os anos, no mês de maio, eram lavradas por arado puxado por duas e três juntas de gado barrosão que o “tocador”, de aguilhada em punho, não deixava amolengar.
Sóbrio na forma de viver, o povo de Vilarinho das Furnas viveu feliz e solidário até ao dia em que um inexorável despacho emitido pelo ministro da tutela ordenou a construção de uma barragem de grandes dimensões no rio Homem, a jusante da aldeia.
Um simples despacho de um ministro de um Estado com poderes discricionários traçava assim, em dois minutos e em meio dúzia de palavras, a extinção de uma comunidade serrana secular com identidade genuína. Um povo que vivia tranquilo em harmonia com a Natureza, que não sentira a necessidade dos benefícios da energia elétrica, era assim expropriado dos seus haveres e arrancado da terra que o vira nascer e crescer.
Para epitáfio da pedra tumular da aldeia, escreveríamos “Vilarinho das Furnas era uma aldeia comunitária onde o povo vivia feliz, acordando ao som das campainhas e dos chocalhos das rezes, iluminado pela luz natural do astro rei. Sentenciada por um despacho fatal exarado em nome do progresso, acabou por finar submersa na profunda escuridão das águas de uma albufeira”.
Sobre um habitante da aldeia, agricultor e pastor, de seu nome José Lourenço Fecha, mais conhecido pela alcunha de “Fecha de Vilarinho”, conta-se a seguinte história:
Um certo dia, ao regressar com o gado da vezeira das pastagens do alto da serra à aldeia, viu aparecerem, repentinamente, na estreita estrada florestal que levava ao local da barragem, vindos dos lados do santuário de S. Bento da Porta Aberta, meia dúzia de polícias montados em potentes motos com as sirenes a debitar centenas de decibéis de enervantes e estridentes sons pelos cômoros e alcantis da serra, sem qualquer deferência pela ancestral tranquilidade e harmonia reinante na recôndita montanha.
O “Fecha de Vilarinho” deduziu de imediato que tal aparato só podia ser para proteger algum “cão grande” do governo. Entrementes, habituado à quietude do ambiente serrano, perturbado apenas quando o boi das vacas pressentia por perto o lobo, os animais da vezeira confiada, principalmente o gado cavalar, entrou em súbita debandada monte abaixo.
Furioso, agarrado ao cajado de lodo, o pastor exprimiu, alto e bom som, para si e para quem o quisesse ouvir, por palavras e por gestos, o que lhe ia na alma: «Filhos duma p…! Os cabrões estão a espantar o gado com este banzé! Está visto que nos querem afogar com a barragem. Mas por mim, c…, só saíamos das nossas casas dentro de um caixão!»
Como o pastor já calculava, atrás das barulhentas motos, a uma velocidade muito para além da aconselhável para circular numa estreita estrada de montanha com pouco mais de três metros de largura, sem bermas, e com altos precipícios de um dos lados, vinha uma forte comitiva, presidencial, governamental e eclesiástica. Num enorme automóvel preto, onde baloiçava, na frente, uma bandeirinha da Nação, vinha S. Exc.ª o Presidente da República acompanhado por dois desconhecidos fardados; numa outra viatura, da mesma cor, vinha S. Ex.ª o Ministro da tutela, acompanhado pelo governador civil e por dois membros do seu gabinete. A completar o ramalhete, numa outra, da mesma cor, vinha S. Eminência o Arcebispo e dois eclesiásticos.
O Fecha de Vilarinho temeu pela “Ruça” e pela “Cereja”: as duas éguas, ambas prenhes no final do período de gestação, empinaram nas patas traseiras e relinchando assustadas desembestaram serra abaixo pelo meio da penedia e do mato de forma violenta e intempestiva como quem foge do diabo. Os animais mais velhos da raça bovina, menos assustadiços, pasmados com a ocorrência encostaram-se a uma das bermas da estrada parecendo querer facultar a passagem da comitiva. Já os mais novos, nervosos, estugaram o passo de tal maneira que depressa desapareceram da vista do “Fecha de Vilarinho” que, furibundo de raiva com o que estava a acontecer, levantou a comprida vara de lodo que trazia consigo e fazendo-a sibilar no ar em rápidos movimentos ameaçadores, gritou bem alto na cara dos polícias motoqueiros:
— Ah, Portugal, Portugal! Tão pequenino…tão pequenino, mas tão cheio de ladrões e de filhos da p...!
Servos diligentes detentores de uma fidelidade inabalável aos governantes de um regime político ditatorial, prenhes de um despotismo desconhecido pelo povo da aldeia comunitária de Vilarinho das Furnas que vivia num regime de democracia participativa, os polícias motoqueiros não podiam tolerar tal tipo de provocação. Zelosos, desmontaram das motos prontos para agir em conformidade com os regulamentos. Astuto, o “Fecha de Vilarinho” pressentiu o perigo. Homem da montanha, ágil como a corça, habituado a subir e a descer a serra todos os dias, não esperou mais. De cajado na mão, meteu serra abaixo gritando a plenos pulmões: “Vinde, vinde! Agarrem-me, se forem capazes!”
Por falta de treino para calcorrear a serra e ainda limitados nos movimentos pelas grossas, rijas e altas polainas, os polícias limitaram-se à intenção de cumprir os regulamentos.
Fonte: Correio do Minho, em 14-08-2013

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